Memorial Literário

  • Lembro-me como se fosse a pouco tempo atrás do momento em que eu estreei meu primeiro uniforme de Jardim de infância. Minha mãe (praticamente uma pedagoga), para valorizar o momento mágico de ingresso à escola, tirou várias fotos. Minha irmã Helena, e eu, ambas com as pastas nos braços, Maria-chiquinhas com laços de fitas grossas (como se fôssemos gêmias) e um sorriso amarelo, ansiando pelo que há de vir.
  • Meus materiais escolares tinham cheiro de brinquedo novo (algo que amo até hoje) e tudo era muito bem organizado e caprichado. Nós passávamos bom tempo das férias ilustrando a primeira página de cada caderno, com muito cuidado para não quebrar as pontas dos lápis novos.
  • Na escola havia músicas, brinquedos, área de areia, e a gente brincava muito, em tudo, e corríamos por toda escola e o pátio nos parecia enorme. As letras que eram pintadas no chão, de início eram um verdadeiro convite ao desafio de aprender!
  • Inicialmente, incentivada por meus pais, acreditava ser uma artista: desenhava tudo que passasse por minha imaginação! E sonhava em viajar, todo dia em um lugar diferente. Desejei ser caminhoneira por forte influência de meu pai e as deliciosas marmitas que minha mãe preparava para ele, na véspera dele viajar. Por isso, nos meus desenhos, possui uma frota de caminhões: vermelho, rosa, lilás, floral, estampado de bolinha, com estrelinhas.
  • Até que decidi que queria estudar muito e ser veterinária! Para entender sobre a amizade das formigas, do por que do voo dos passarinhos, de como o pintinho conseguia crescer apertadinho dentro do ovo e para poder cuidar de todos os cachorros abandonados por donos desnaturados.
  • Na escola perguntava sobre tudo isso, mas a tia dizia que “não era hora”, então eu tinha que imaginar as respostas, e para isso foleava os livros mais grossos da estante para ficar inteligente. Minha mãe, sabiamente, enfatizava que “quem come tudo aprende a ler mais rápido”. Passei a me dedicar a essa parte da alimentação, também!
  • E um dia, a escola entregou um livro para cada aluno. Era um livrinho com desenhos e letras. A “tia” dizia que o Barquinho Amarelo que nos ensinaria a ler. Lógico que me empolguei!
  • Pensava em fazer, desenhar, montar, colorir barquinhos, barcos, lanchas, navios e até submarinos eu poderia fazer! Mas “não era hora”, dizia a professora. Bastava folear o livro, ficar quietinha, acompanhar as letrinhas com a ponta do dedo, que aprenderíamos a ler.
  • Parecia-me chato ler. As figuras falavam por si! E ler era muito devagar... Mas, minha mãe me entendeu (e ninguém entende melhor do que as mães) levou-me a casa de uma tia-avó, daquelas que sentam no chão para brincar e que explicam tudinho que a gente queira saber, e ela me ensinou!
  • Ela me mostrou como fazer o barquinho com papel amarelo. E o fiz de vários tamanhos, texturas e cores diferentes. Levei para a turma da escola ver e para ensinar para todos. Mas “não era uma boa hora” para aquilo.
  • E, um tempo depois, de dentro do caminhão de meu pai, enquanto o aguardava, observei um letreiro grande, bem enfrente a mim, com uma linda coroa dourada... E fiquei quieta. E pensei. Juntei calmamente as letras grandes e coloridas, sem passar o dedinho. E li: O Rei das Baterias!
  • Meu pai se emocionou, me abraçou e eu vibrei muito, e nunca mais parei.
  • Lia tudo que via pela frente: Ricardo eletro, Carnot Moveis, Roçar Peças, Daniel Diesel... E um mundo se abriu em minha frente.
  • Conforme o tempo foi passando, as paginas do barquinho amarelo foram se gastando pelo uso e as letras se juntando e as histórias aparecendo. Num dia qualquer, minha mãe, adiantou-se ao livro e me deu a Cocota – uma galinha garnisé de penugem cor de mel, que de tão mansa que era, se agachava para ser carregada – personagem do livro que se tornara companheira da Terezinha.
  • Mas eu e minha Cocota éramos muito mais amigas do que a tal Terezinha e sua galinha. Ela se deixava vestir roupinhas, andava na cestinha de minha bicicleta Ceci... Cocota, assim, como a do livro, botava ovos com pintinhos dentro. Assim, passo a passo lia e vivia a história.
  • Quando troquei de escola, também tirei fotos com o novo uniforme e junto a todos os meus materiais com cheiro de brinquedo, fui para a sala da “tia Léo”. A sala era toda decorada de Moranguinho (acho até que cheirava a moranguinho) e a professora era um doce e nos tratava com muito carinho, até dia que me trocaram de sala. Lembro-me que a nova sala não tinha mural, calendário, e nem letras coloridas. Lá não tinha cor, nem desenhos, nem “tia”.
  • A nova professora se chamava “dona Maria” e tanto a sua fisionomia quanto sua postura era bem ríspida. Dona Maria ensinou-nos a ficar de pé quando ela entrasse em sala, a levantar a mão para pedir ou falar algo, a nos sentarmos corretamente e a ficarmos calados e só falássemos quando solicitados.
  • Eu me lembro bem que nunca gostei de Dona Maria. Ela achava que não sabíamos ler, desenhar e brincar. Inclusive, ela leu para a gente, o Barquinho amarelo. E estranhamente, ele não possuía mais nenhum encanto. Contei para ela que já havia lido este livro e que , assim como a personagem Terezinha, eu também possuía uma galinha chamada Cocota. Dona Maria riu, como nunca havíamos visto rir, riu muito, zombou e duvidou. Parei de contar minhas histórias. E quando não entendíamos alguma coisa, e lhe perguntava, ela xingava. Então também parei de perguntar.
  • O tempo passou. Estudei, li, desenhei, fiz tudo o que pediam para fazer. E nesta época não pediam tanto assim. Aprendi o que tinha para aprender e ponto. Mas lembro-me que o melhor da escola estava nas brincadeiras do recreio, nos passeios, nas viagens ás cidades históricas, nas quadras, nas gincanas, nas pessoas. E eu aproveitei tudo aquilo!
  • As professoras passaram a pedir para que lêssemos que iriam dar nota. Mas às vezes, nem precisávamos ler, nossos colegas contavam a historia, o que era bem mais divertido, e ganhávamos notas! Tudo bem que esquecíamos alguns dados (mas também, nunca fui boa em memorizar dados) e dava tudo certo no final.
  • A gente costumava dividir os capítulos do livro entre o grupo de amigos e cada um lia uma parte, para criar um mistério. Gostávamos de apresentar o livro para a turma com teatro, paródias de músicas, adivinhações, brincadeiras... Filmávamos enquanto a estória sendo contada. (inclusive guardo este material, até hoje). Apresentávamos o livro com cartazes coloridos, propagandas como se estivéssemos na rádio... Mas ainda assim, alguns professores não gostavam, diziam que não havia tempo, que daria trabalho! Ficha Literária que dava ponto.
  • Aprendi a preencher ficha literária e a ganhar pontos, mas me esqueci de ler com prazer (e eu esqueço facilmente, acreditem). Até o dia que na apareceu um livro que gerou borbulhas entre todos os alunos. O seu título é: Cristiane F. 13anos, drogada e prostituída, e em seguida surgiu O Diário de Laura Palmer. Duraram pouco, pois ambos foram bruscamente recolhidos, proibidos de serem lidos, confiscados na Diretoria e seus donos (inclusive eu) penalizados com perdas de pontos. (Até hoje não entendi porque tiraram nossos pontos!) E o assunto fora encerrado.
  • Quase morremos de curiosidade em saber o que realmente haveria ali escrito que não poderíamos ler! Mas entendo que a vida é feita de “Perdas e Ganhos”- Lya Luft-, então tempos depois, os li. Não contei para ninguém, e o que poderia ter sido esclarecido, foi encerrado ali.
  • Já no Ensino Médio, numa escola de pátio pequeno, lia muitos conteúdos e tentava conciliar com namoros novos, viagens, farras e festas. E buscava entender “Porque os homens mentem e as mulheres choram”- Allan e Bárbara Pease , mas a carga horária das aulas eram muito intensas, e ficávamos muito cansados pois os conteúdos a serem repassados demandavam de muito tempo. Nesta época, lia para estudar e só escrevia para dissertar.
  • Passei no vestibular, e com Anselm Grun entendi que é fundamental que se “Seja fiel a seus sonhos” mesmo quando muitos te desencorajam. E em “Um dia daqueles”- Bradly Trevor Greive o curso de Pedagogia ensinou sobre a prática ideal do professor. Não entendi sobre o que eles ensinavam então me matriculei em um Curso de Magistério. Lá aprendi varias pedagogias, dentre elas, a “Pedagogia da Autonomia”- de Paulo Freire e o que era ser professor e o que fazer para ensinar.
  • Assim, reaprendi a desenhar, ler, escrever, e a significar. Entendi que ás vezes é necessário “Jogar vacas pelo precipício”- Dominique Glocheux quando o tempo apertava e se tornava curto para fazer tantas coisas ou quando defendia meu ponto de vista. Posteriormente me formei em ambos os cursos, com êxito e muita satisfação.
  • Trabalhei por dois anos em uma linda escola da rede pública municipal após um mês de minha formatura, onde aprendi a colocar em prática minha profissão e por quatro anos, trabalhei num centro sócio-educativo para menores infratores, onde ensinei muito e aprendi que tenho muito a aprender!
Atualmente, na Secretaria Municipal de Educação, tenho claro para mim que fora na época da escolha de minha profissão que descobri que havia muito a se fazer pelas crianças e jovens que sabem imaginar, que criam com facilidade, que se envolvem, se emocionam demasiadamente, mas que se encontram quietas, nas muitas escolas de nosso país, só passando o dedinho sob as letras, por que infelizmente alguns professores ainda acreditam que, agora e na escola, não seja “uma boa hora” para esses alunos participarem ativamente de seu próprio processo de aprendizagem.

3 comentários:

  1. NOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOSSA MENINA, QUE LINDO!
    OLHA, EU ATÉ SENTI O GOSTINHO E O CHEIRINHO DA MARMITA DO SEU PAI. E ACHO QUE NOS CONHECEMOS À BEM MAIS TEMPO, POIS TAMBÉM FUI DA SALA DA TIA lEO.
    E SÓ PEÇO À DEUS QUE EU NÃO ME TORNE NUNCA UMA "DONA MARIA"!
    BEIJOS!!!

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  2. que lindo uma historia maravilhosa de se espelha que mulher batalhadora vc em parabens foi muito lindo
    beijos

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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