Dia 03/ 06 /09UM SONHO QUE NÃO SERVE AO SONHADOR

Atendimento a cursista de Língua Portuguesa NISLENE DE SOUZA MOURA MACIEL que informou sua desistência devido às mudanças de horário e sua indisponibilidade aos sábados e horário noturno. A essa professora foi entregue os restantes dos materiais do Kit Gestar e nos colocamos a disposição para auxílio, caso seja necessário.
Email enviado aos cursistas de língua Portuguesa e matemática Assunto: um sonho que não serve ao sonhador-
Caros colegas, trouxe para vcs, um texto que retrata as expectativas de um aluno adulto, e as propostas da Educação para este público. Muito interessante, principalmente para quem lida e conhece as peculiaridades da EJA.
"A educação não tem como objeto real armar o cidadão para uma guerra, a da competição com os demais. Sua finalidade, cada vez menos buscada e menos atingida, é a de formar gente capaz de se situar corretamente no mundo e de influir para que se aperfeiçoe a sociedade humana como um todo. A educação feita mercadoria reproduz e amplia as desigualdades, sem extirpar as mazelas da ignorância. Educação apenas para a produção setorial, educação apenas profissional, educação apenas consumista, cria, afinal, gente deseducada para a vida.” (SANTOS, 1998, 126). SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 5ª ed., p 126, 2000. UM SONHO QUE NÃO SERVE AO SONHADOR José Carlos e Vera Barreto “Seu” João nunca tinha ido à escola. Agora, com dois filhos criados, ele ficou sabendo de um curso que ensinava a ler e escrever perto de sua casa. Como os compadres seus vizinhos estavam estudando lá, “seu” João resolveu estudar também. 1. O ALUNO TRAZ COM ELE UMA IDÉIA DE ESCOLA O fato de nunca ter posto os pés numa escola, não significa que “seu” João não tenha idéias bem precisas a respeito da escola. Para ele, assim como para a imensa maioria dos adultos analfabetos, a escola é o lugar onde os que não sabem vão aprender com quem sabe (o professor) os conhecimentos necessários para ter um trabalho melhor (menos pesado, mais bem pago) e um lugar social mais valorizado. Sabendo por que busca a escola, o adulto elege também seu conteúdo. Espera encontrar, lá, aulas de ler, escrever e falar bem. Além, é claro, das operações e técnicas aritméticas. Espera obter informações de um mundo distante do seu, marcado por nomenclaturas que ele considera próprias de quem sabe das coisas. Mas não é só em relação ao que a escola ensina que “seu” João e seus companheiros trazem muitas informações. Eles têm também muitas idéias a respeito de como a escola ensina. A aprendizagem, na visão popular, está centrada na ação do professor. É ele que coloca o conhecimento dentro dos alunos. Para isso, o professor usa alguns recursos como: explicações, correções, cópias, repetições... Para essas idéias contribui, também, a distribuição das carteiras, todas voltadas para o professor. Afinal, todo o conhecimento virá dessa figura central. Também existem idéias consagradas sobre a atitude que os alunos devem ter para poder aprender. Como imaginam que o professor é o único detentor do conhecimento que vão buscar, acham que devem prestar toda a atenção naquilo que o professor diz. Costumam achar pura perda de tempo quando um colega fala. Na opinião, o conhecimento vem do professor, nunca dos colegas. Por isto, irritam-se, quando a professora estimula a discussão entre os alunos. Por outro lado, acham que o professor ensina, só quando fala de coisas sobre as quais eles não tenham a menor idéia. Quanto menos estiverem entendendo mais acreditam que o professor esteja ensinando. Se não entendem a culpa é deles (“que não já têm muita cabeça”) o professor, coitado, está se esforçando... Por isso, sentem-se frustrados quando a professora fala de coisas do seu dia-a-dia. Não vieram para aprender melhor o que está próximo deles. Querem saber sobre o que está distante. Na sua imaginação, é o conhecimento desse distante que permitirá a melhoria de sua vida. Outra idéia muito forte que trazem sobre como aprender melhor é a crença cega no poder de repetição. Baseados em sua experiência de vida, em que na quase totalidade das vezes aprenderam as coisas vendo os outros fazerem e tentando fazer depois, acreditam piamente que irão aprender se repetirem muitas vezes o que estão procurando aprender. Apresentamos aqui algumas das idéias muito presentes entre os alunos adultos que ingressam na escola. Trata-se, evidentemente de uma generalização, e as exceções podem ser encontradas. Para os leitores que acharam ingênuas essas idéias, gostaria de lembrar que elas estão presentes também na maioria dos professores. Afinal, essas concepções são ideológicas e se introjetam na população de forma sutil e delas só estão a salvo aqueles que as analisam de forma crítica e cuidadosa. 2. A ESCOLA IDEALIZADA PELOS ALUNOS ADULTOS PRODUZ O CONTRÁRIO DO QUE ELES ESPERAM DA ESCOLA Vimos acima que o aluno que procura a escola acredita que ela deverá ajudá-lo a obter os conhecimentos necessários a uma vida melhor e socialmente mais valorizada. Ideologizado pela sociedade, assumiu que é o culpado pela situação indesejável em que vive e que quer superar. Se tivesse estudo não estaria assim... Nem de leve desconfia que vive em uma sociedade de classes cujas relações interferem significativamente nos destinos individuais. Que pertencer a classes socialmente privilegiadas dá uma vantagem inicial na ocupação de posições sociais vantajosas. E que, inversamente, fazer parte de classes inferiorizadas significa uma desvantagem inicial na ocupação dessas posições que dificilmente é superada pelo estudo ou escolarização. Não percebendo isso, acredita que o sucesso ou fracasso é resultado apenas do seu esforço individual. Entrar na escola ou retornar a ela, representa um esforço adicional para mudar sua sorte. Embora sem perceber, o passo dado pode ser importante nesse processo de mudança. Desde que não se limite a atingir objetivos apenas individuais, mas se estenda também na direção de mudanças sociais. Para ser possível, o sonho não deveria restringir-se a um sucesso pessoal, mas a uma melhoria coletiva de vida. Quanto ao conteúdo que espera da escola, isto é, ler, escrever e falar bem não é possível colocar nenhum reparo. Sua sensibilidade lhe permitiu perceber que uma das causas de sua fragilidade social é a sua exclusão do código lingüístico dominante. Tem, portanto, o direito de esperar isso da escola. A demanda por informações de um mundo distante do seu se explica quando sabemos que ele aspira a ascender de seu pequeno mundo. Trata-se de aspiração legítima já que horizontes mais amplos estimulam a produção do conhecimento. Mas essa legitimidade não invalida o fato de que à escola não compete apenas a transmissão de informações distantes e curiosas. Podem ser transmitidas de forma mais viva por outros veículos de comunicação principalmente rádio e televisão. A escola tem papel mais amplo: produzir conhecimento. E conhecimento se produz no estabelecimento de relações entre as informações obtidas. E como as relações não podem ser transmitidas (pois nesse caso seriam apenas novas informações), precisam ser reproduzidas por quem quer conhecer através da reflexão um trabalho pessoal e intransferível. Assim, é possível perceber o equívoco dos alunos quando esperam por um professor que coloque o conhecimento dentro deles. Professor algum tem tal poder, pelo simples fato de que conhecimento (como produto de relações) não se transmite. O professor pode e deve transmitir informações, desafiar e estimular os alunos no estabelecimento das relações. Mas a produção do conhecimento é exclusiva dos que realizaram esse trabalho. E esse exercício de pensar, isto é, de estabelecer relações não se restringe ao que é dito pelo professor. Pode acontecer e acontece a todo momento, inclusive a partir do que é dito pelos colegas. Assim, ao imaginar como perda de tempo a fala de seus colegas, o aluno está, na verdade, desperdiçando valiosas oportunidades de conhecer. Igualmente equivocada é a atitude de restringir o conhecimento apenas ao totalmente desconhecido e socialmente valorizado, segundo sua opinião. É mesmo impossível atingir o totalmente desconhecido a não ser partindo do que já é conhecido. Na realidade, sempre será possível conhecer melhor o que já se sabe. Em outras palavras, mesmo o já-sabido possui aspectos que são desconhecidos. Saber melhor o que já se sabe e saber o que ainda não se sabe são objetivos da atividade escolar. Mas o grande equívoco dos alunos (e muitas das vezes também do professor) é atribuir à repetição mecânica o poder de ensinar. Curiosamente, não se dão conta de que em sua própria experiência de vida a aprendizagem não se deu pela mera repetição mecânica. Que ao observarem os outros fazerem com o objetivo de aprender, estavam estabelecendo relações, comparando com outras formas possíveis de fazer etc. Enfim, estavam pensando sobre aquilo que queriam aprender. Da mesma forma, ao tentar fazer o que tinham visto ser feito, também não se tratava de mera repetição. Pensaram sobre os movimentos a serem feitos, compararam os resultados obtidos com os desejados, imaginaram novas alternativas, pensaram enfim sobre o que estavam fazendo. Só depois que aprenderam, foi possível repetir mecanicamente, isto é, sem pensar, o que então já sabiam. Não tendo se debruçado sobre esse processo de aprendizagem que viveram, parece-lhes que tudo se deu pela mera repetição e tratam de pôr essa crença em prática, na escola. Quem já alfabetizou adultos deve lembrar-se dos alunos que, levando caderno e lápis já no primeiro dia de aula, se põem a copiar e re-copiar mecanicamente qualquer coisa que o professor escreva no quadro negro. 3. A AÇÃO DO PROFESSOR A disparidade entre a visão que o aluno tem do que seja a escola e uma educação que efetivamente sirva a esse aluno pode gerar conflito. Não são incomuns casos até de desistência do curso. Não encontrando uma escola que corresponda às suas expectativas, o aluno se frustra e como não é uma criança que os pais levam obrigatoriamente à escola, acaba abandonando o curso. Para resolver essa situação não basta que o professor faça um discurso no primeiro dia de aula avisando dessa diferença. O poder de um discurso, por melhor que seja, é muito pequeno para se contrapor a uma imagem gerada pela cultura em que o aluno está inserido durante uma vida inteira... Os professores que têm obtido maior sucesso em trabalhar essa situação costumam ter presente que é a partir do conhecimento que se atinge o desconhecimento. Por isso, nas primeiras semanas de aula preocupam-se em que o aluno “reconheça” na escola que está entrando, a escola que ele imaginava. Qual o problema de as carteiras estarem dispostas de forma tradicional nos primeiros dias? (Mesmo porque em muito pouco tempo surge alguém que não enxerga ou escuta bem, criando a situação favorável à reorganização da sala para o favorecimento de todos). Que mal existe em que o aluno tente copiar o que o professor escreve? Principalmente quando é possível ligar o copiado ao seu significado ou criar situações onde o objeto da cópia tem um sentido especial para quem o realiza: seu próprio nome, nome dos seus filhos,... O objetivo do educador não é chocar o aluno, mas desencadear um processo de descobertas. Existiriam problemas se o professor se conformasse com essa visão do aluno e não captasse nela situações capazes de gerar uma nova visão, e não desse oportunidade para que o aluno experimentasse uma concepção educativa mais adequada a seus próprios interesses. Isso não precisa acontecer nos primeiros momentos. Poderá ocorrer no decorrer do processo. Compete ao professor desafiar o aluno para outras atividades além daquelas que ele espera da escola. É no exercício delas que ele irá percebendo sua utilidade e irá modificando a sua visão escolar. Igualmente, quando o educador desenvolve atitudes frente ao conhecimento dos alunos, diferente da esperada por eles, os alunos podem mudar a sua visão sobre o papel do professor e dos colegas na construção desse conhecimento. BARRETO, Vera; CARLOS, José. Um sonho que não serve ao sonhador. In: Construção coletiva: contribuições à educação de jovens e adultos. — Brasília: UNESCO, MEC, RAAAB, 2005. p. 63-68.

Nenhum comentário:

Postar um comentário